Vive-se na contemporaneidade o avanço do acesso à informação, possibilitado pelo rápido e elevado crescimento das tecnologias digitais. O que se experimenta na atualidade é a continuação evolutiva dos meios de comunicação, que geram mudanças consideráveis nos relacionamentos, economia, na educação e, principalmente, na cognição.
Observa-se que, a cultura de massas, originada pelo jornal, continuando pelo telégrafo, fotografia, e efetivando-se mais ainda pela TV formou o homem de massa. Pela TV, consolidou-se um tipo de transmissão unilateral e informação, em que o único feedback eram as mudanças comportamentais observadas na sociedade. Logo depois, a partir dos anos 70, já começam a surgir novas tecnologias como o videocassete, videogames, revistas segmentadas para públicos específicos, assim como o rádio, tvs a cabo etc. Surge então a cultura das mídias, que estabelece um novo processo comunicacional, que começava a minar a centralização, a sincronização e os padrões típicos dos meios de massa. Por mais que, durante esse tempo, a TV ainda exercia forte influência, a cultura das mídias foi de suma importância, pois serviu de base para o surgimento, a partir dos anos 80, daquilo que viria a mudar significativamente as relações do ser humano intra e internamente: a cultura digital, possibilitada pelo acesso doméstico aos microcomputadores. Os antigos espectadores passaram a ser também usuários. “Isso significa que começou a mudar aí a relação de sentido único com o televisor para o modo interativo e bidirecional que é exigido pelos computadores.” (SANTAELLA, 2010, p.81).
A cultura digital elevou a concepção do uso de mídia, fazendo surgir a multimídia, que é o processo de convergir para a linguagem digital diferentes mídias: a escrita, a visual e a sonora, diferentemente da cultura das mídias com seus suportes incompatíveis (rádio, tv, máquinas de escrever). Cada vez mais o acesso à informação passava da passiva, para a forma ativa (ou seja, da simples recepção para a produção). À medida que a cultura digital crescia, amalgamavam-se cada vez mais os elementos da multimídia, em uma mistura denominada hipermídia, ou seja, uma mídia interativa com gráficos, textos, áudio, vídeo, em que se pode, com a ajuda do mouse, clicar “de um lugar ao outro, em uma miríade de caminhos, com o potencial de rastrear um vasto mundo de informações. O CD-ROM era um tipo de suporte hiper midiático, porém, hoje, são as páginas da internet, por exemplo. Com o crescimento das ligações on-line entre computadores, a sociedade contemporânea passou a ser definida, portanto, pela interatividade, não mais do usuário e o computador, mas entre usuários que tem na tela do computador a interface necessária à interação entre ambos, criando e disseminando informações a todo momento. Tudo isso se dá em um ambiente chamado “ciberespaço”.
Conforme Rosney (1997, p.203-204), “O mundo da internet é o ciberespaço. Cria as condições de uma nova cidadania eletrônica, uma forma de relação entre os homens, oportunidades culturais, comerciais e de pesquisa, uma nova forma de competição”. Nesse ciberespaço, ou seja, espaço da internet (não relegado somente ao computador somente, devido ao crescimento do uso dos smartphones), cria-se um tipo de cultura onde se troca informações a todo momento, criam-se comunidades, mediam-se as relações sociais a todo momento. Surge, então, o homem questionador de seu tempo, que tem acesso a informações diversas, produz cultura e, cada vez mais imerso na cibercultura, vive em função dela, simplesmente pelo fato de acessá-la a todo instante.
É visível, no presente século, a diferença nas relações humanas que a cultura digital proporcionou. Permite-se, por meio do ciberespaço, o intercâmbio com pessoas de diversos países e culturas. O acesso à informação possibilitou a leitura de livros, o acesso a vídeo aulas diversas, etc. No entanto, por ser permeado de relações humanas, o ciberespaço, com sua cibercultura, traz consigo todas as complexidades das ações humanas, gerando resultados tanto positivos quanto negativos.
Em uma entrevista com o psicólogo espanhol Marc Masip, realizada pela BBC News e divulgada pela Folha de São Paulo no dia 18 de outubro de 2021, o psicólogo esclarecia os males causados pela constante conexão às redes sociais proporcionada pelo celular. Masip afirma que o celular é a heroína do século 21 e compara as reações de muitos dos que ficaram sem redes socias no dia 4 de outubro do mesmo ano, devido a elas terem ficado fora do ar por 6 horas, com crise de abstinência, que é uma reação de quando a pessoa não tem acesso à droga da qual é dependente, como o cigarro ou o álcool.
O psicólogo, que oferece um serviço de reabilitação para dependentes em redes sociais, alega que os males vão de sensação desconfortante da abstinência, mortes no trânsito causadas pelo uso do celular ao volante até questões de transtornos mentais causados pelo bullying nas redes sociais. Tais alegações demonstram a necessidade de se pensar de forma crítica o uso das ferramentas digitais. Principalmente o uso dos celulares, por meio do qual os jovens adentram o ciberespaço e produzem cultura e são influenciados por essa mesma cibercultura, ao ponto de ela intervir em seus aspectos sociais, emocionais e cognitivos. No entanto, a pergunta crucial é: Onde está a escola, frente a essa realidade?
Primeiramente, é preciso esclarecer qual é a relação que há entre a escola e a sociedade. Entendendo isso, é possível compreender como a escola pode lidar com um aspecto que tem refletido na vida dos membros da sociedade em que ela está. Portanto, para tal entendimento, vale ressaltar o fato de que a educação é socialmente determinada. Isso, para Libânio (1990, p.19) “significa que a prática educativa, e especialmente os objetivos e conteúdos do ensino e o trabalho docente estão determinados por fins e exigências sociais, políticas e ideológicas.” Mas do que um fim, as demandas sociais são exigências que influenciam no processo educativo.
Essas concepções da educação escolar se refletem na legislação. Por ser a cultura digital hoje tão disseminada, as leis que embasam o ensino nacional não estão alheias a essa realidade. A Base Nacional Comum Curricular, ao estabelecer os direitos de aprendizagem e o foco do desenvolvimento de competências, elenca 10 competências esperadas no aluno ao final de seu processo educacional na educação básica, dentre as quais, destaca-se, no presente texto, a cultura digital. O texto da lei afirma que, compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva. (BRASIL, 2017, p.9)
Em uma leitura superficial, pode parecer que a lei reduz a cultura digital ao nível pragmático. Quando se leem os males apontados pelo psicólogo Marc Masip e os compara com esse fragmento da BNCC, em uma leitura superficial, parece que a Lei se preocupa apenas em formar o indivíduo apto para utilizar os instrumentos da cultura digital, quando ele compreende como eles funcionam, porém negligenciando os males que vem com os usos sem limites da conectividade. Isso é um erro refletido em muitas instituições escolares, onde a preocupação é entregar um tablet nas mãos de crianças, onde a preocupação é se a sala tem ou não recursos tecnológicos de última geração e onde a preocupação é se o aluno sabe ou não sabe se comunicar nos ambientes virtuais.
Porém, isso é um equívoco refletido em muitas práticas, mas não defendido pela Lei. Pelo contrário, a BNCC fala sobre uso de forma crítica, significativa, reflexiva e ética. Desenvolver essas formas de uso das tecnologias digitais é imprescindível, dado o preocupante fato descrito e tratado pelo psicólogo entrevistado em seu consultório. Como a escola então pode ultrapassar a barreira do pragmatismo e tratar a cultura digital em sua dualidade: ao mesmo tempo que é útil e exigência da sociedade contemporânea, ela também é perigosa, tal qual uma droga? Para isso a escola detém o recurso da transversalidade.
Com um olhar conclusivo, a transversalidade surge com o intuito de ultrapassar a concepção de educação que separa o sujeito do conhecimento. Ela se refere a temas que perpassam as disciplinas, não sendo novas disciplinas. As disciplinas têm a ver com a instrução. Para Araújo (2003, p.31) “a grande maioria das escolas tem se preocupado, objetivamente apenas a instruir.” E quando isso se coloca no bojo da cultura digital, a realidade é a seguinte: muitas escolas se tornaram o espaço do pragmatismo digital, onde se ensina tudo sobre as novas tecnologias, instruem-se os alunos a ligarem, mexerem nos últimos hardwares e softwares, porém não se trabalha também com os reais problemas do uso constante das redes sociais, por exemplo. Não que a Lei da educação brasileira não trate da transversalidade. Ela está presente na própria concepção da BNCC de parte diversificada do currículo, com temas que fazem parte da cultura do aluno. Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei 9394/96) fala nos parágrafos 7º e 9º do Art.26 sobre os temas transversais sendo incluídos no currículo da educação básica. Porém, quando se fala em trabalhar com transversalidade, os temas que são abordados na maioria das escolas incluem drogas na juventude, por exemplo, mas em muitos lugares, não se fala sobre as redes sociais como sendo tão prejudiciais quanto. Enxergam-se as drogas como empecilho ao desenvolvimento da cidadania, mas as tecnologias são vistas enquanto utilidade. Na fala do próprio entrevistado, Masip (2021), ele afirma que, para o uso das tecnologias, “quase não há regulamentação, e educação para as famílias e nas escolas sobre o uso responsável da tecnologia é muito pobre. “
É muito importante que os atores da escola tenham em mente que, com as novas configurações tecnológicas, surgem novas formas de ser e estar no mundo. Viu-se isso durante toda evolução da industrialização, passando pelas mídias, até chegar à cultura digital. Com isso, entende-se que novos problemas também surgem, ou seja, novos temas. De acordo com Araújo (2003, p.36) os temas transversais “vêm a ser as temáticas específicas relacionadas à vida cotidiana da comunidade, à vida das pessoas, suas necessidades e seus interesses.”
Tratar sobre os malefícios apontados na entrevista pelo psicólogo, no ambiente escolar, por meio da transversalidade, vai ao encontro do entendimento dos temas transversais como aqueles que “buscam dar respostas aos problemas que a sociedade reconhece, durante um período de tempo, como prioritários ou especialmente preocupantes. É possível, por meio de uma séria e atual reflexão sobre a sociedade, desenvolver um currículo que inclua essa temática, para, de verdade, desenvolver a competência de um uso das tecnologias de forma crítica, significativa, reflexiva e ética.
Por isso mesmo, mergulhar no jogo das complementaridades deveria ser o mote para nós educadores em prol de formas de aprendizagem que estejam em sintonia com os sinos que tocam no nosso tempo. Compartilhe conosco a sua experiência! Entre em contato com a nossa Coluna “EDUCAÇÃO E SOCIEDADE”, toda segunda no Jornal Aurora.