Representantes do governo boliviano participaram ontem (24) de reunião do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA) para apresentar a situação das eleições gerais do país, realizadas no domingo (20) e ainda sem resultado definido.
Os bolivianos contestaram as posições apresentadas no relatório da missão técnica da organização que acompanhou o pleito, que indicou irregularidades e defendeu a realização do segundo turno . Diante da polêmica, Estados-membro se dividiram tanto sobre as eleições quanto acerca do papel da OEA em relação ao episódio.
A seguir apresentado o que se sabe até agora, os questionamentos apresentados por alguns países, as respostas do governo e das autoridades eleitorais bolivianas, as propostas no âmbito da OEA e os próximos passos envolvendo a polêmica na conclusão da contagem de votos e finalização das eleições.
As eleições gerais da Bolívia deste ano ocorreram no domingo em um cenário polarizado entre o atual presidente concorrendo à reeleição, Evo Morales, e o principal concorrente, Carlos Mesa. Pela legislação eleitoral boliviana, para se vencer no primeiro turno, é preciso conquistar mais de 40% dos votos com pelo menos 10% de diferença do segundo colocado.
No domingo, após a votação ser encerrada, teve início a apuração. Um dos métodos adotados pelo Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP) consiste em uma transmissão rápida de resultados preliminares, apelidada de “Trep”. Ainda no domingo, o “Trep” apontou uma soma preliminar com 83% dos votos apurados com Morales à frente de Mesa por uma diferença de cerca de 8%.
A atualização no Trep foi interrompida, enquanto a contagem geral, manual, continuou. Um dos integrantes do Tribunal Supremo Eleitoral renunciou avaliando a suspensão do Trep como uma decisão “desatinada”. A contabilização utilizando o Trep foi retomada na noite de segunda-feira (21). Neste novo cenário, Morales havia ampliado ligeiramente sua vantagem, chegando na casa dos 10% necessários para sua vitória no 1º turno. Nesta quinta-feira, 95% dos votos haviam sido registrados neste sistema preliminar, faltando 5% dos votos das áreas mais afastadas.
Começaram protestos por todo o país, com grupos atacando e queimando sede da Justiça Eleitoral em seis estados. O candidato opositor, Carlos Mesa, acusou a Justiça Eleitoral e o governo de estarem promovendo uma fraude massiva e disse que não reconheceria o resultado. Morales condenou a violência e acusou a tentativa de um golpe no país para inviabilizar a eleição. Diante dos atos de violência, tribunais regionais tiveram dificuldades de continuar a apuração dos votos.
Na noite de hoje (24), com 94,97% dos votos apurados, a contabilização divulgada pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) da Bolívia indicava Morales com 46,64% e Mesa, com 36,8%, margem muito próxima dos 10%. A campanha do atual presidente aposta na ultrapassagem da margam, dado o fato de que os votos das áreas rurais historicamente foram mais favoráveis a ele. A campanha de Mesa cobra um segundo turno, uma vez que outros candidatos também se apresentaram como de oposição, acreditando que numa segunda votação poderia sagrar-se vencedora.
Ontem (23), a missão técnica de observação eleitoral da OEA apresentou seu relatório preliminar ao Conselho Permanente da Organização. Nele, a missão apontou problemas como a falta de segurança no armazenamento das urnas e a suspensão da atualização do Trep. Segundo o coordenador do departamento de observação eleitoral, Gerardo de Icaza, a medida teria minado a credibilidade da Justiça Eleitoral no país e, por isso, mesmo que alcançada a diferença de 10%, deveria ser assegurado um segundo turno.
A posição foi seguida por alguns países do Conselho Permanente, como Brasil, Estados Unidos, Argentina, Canadá e Venezuela, este último com representação indicada por Juan Guaidó, e não pelo presidente Nicolás Maduro. Na sessão de hoje, as representações destas nações voltaram a questionar o pleito e a defender o segundo turno.
“Os Estados Unidos apoiam as descobertas da missão da OEA. A missão encontrou irregularidades sérias e uma suspensão suspeita do Trep. Antes disso os resultados indicavam segundo turno. Depois que foram retomados, [vantagem que daria vitória no primeiro turno a] Evo Morales. A missão achou irregularidades, manipulação, falta de transparência, falta de credibilidade do tribunal e necessidade de segundo turno”, declarou o embaixador do país, Carlos Trujillo.
Um comunicado assinado pelos EUA, Brasil, Argentina e Colômbia reforçou esta posição. “Estamos preocupados com as anomalias no processo. Solicitamos que as autoridades eleitorais trabalhem junto com a OEA. Requeremos para que restaure credibilidade realizando um segundo turno. Reconheceremos os resultados que realmente signifiquem a vontade do povo”, assinala a nota.
O ministro das Relações Exteriores da Bolívia, Diego Pary Rodriguez, realizou uma longa apresentação sobre o processo. Afirmou que o Trep é um sistema de informação não oficial, para adiantar tendências, mas que o processamento dos resultados consiste em uma série de procedimentos coordenados pelo Tribunal Supremo Eleitoral. Encerrada a votação, os votos são contados na frente dos presentes e dos delegados das candidaturas. Uma ata é redigida e uma foto desta é tirada. A foto é enviada para o TSE, computada no Trep e na contagem geral.
Segundo Rodriguez, o Trep é utilizado para resultados preliminares até a casa dos 80%. Em pleitos anteriores, operou em percentuais menores, como em 2016. Essa dinâmica, acrescentou, foi publicizada pelo Tribunal Eleitoral antes do dia da votação. No argumento do chanceler, não houve “interrupção”, uma vez que o processo de contagem de fato é o realizado pelo TSE. Ele argumentou que a retomada na segunda-feira (21), um dia após a suspensão do dia 20, teria se dado após pedidos da missão da OEA.
O ministro comentou que a demora posterior se deveu ao fato dos votos restantes estarem em localidades distantes, de difícil acesso e com limitações tecnológicas. No tocante à mudança da diferença entre Morales e Mesa, pontuou que em eleições anteriores os votos das áreas rurais foram para o atual presidente. Por fim, disse que não houve uma denúncia ou evidência de adulteração de atas ou da votação.
“Nenhum dos candidatos apresentou prova que evidenciem uma fraude. Se ocuparam de convocar mobilização, tomada de instituições, queimada de sedes dos tribunais departamentais e perseguição das autoridades eleitorais, não permitindo que se conclua a contagem de votos”, disse.
Uma auditoria será realizada, a partir de solicitação do próprio governo boliviano. Na sessão, o chanceler reforçou a abertura e convidou a entidade, a missão técnica de observação e representantes dos países a uma recontagem das atas com o registro dos votos.
Os Estados-membro presentes e o secretariado-geral da OEA concordaram com a auditoria. Contudo, emergiu uma divergência fundamental entre as delegações presentes. O secretariado e o grupo formado por Estados Unidos, Brasil, Argentina e Colômbia cobra um exame externo vinculante. Ou seja, as autoridades eleitorais bolivianas deveriam agir conforme o resultado desta análise.
“Permanecem sérias preocupações e incertezas com o processo eleitoral. Neste contexto, a credibilidade da autoridade foi abalada. Parece-nos essencial que todos os atores do processo eleitoral assumam compromisso de que reconhecerão resultados da auditoria da OEA. Antes disso é incongruente proclamar resultados definitivo”, defendeu o embaixador brasileiro na entidade, Fernando Simas Magalhães.
O secretário-geral da OEA, Luis Almagro, reforçou a proposta. “O TSE boliviano convida instituições externas para avaliar. A secretaria-geral entende que as autoridades eleitorais não deveriam considerar resultado como legítimos até que o processo [de auditoria que será realizado] seja concluído”, reiterou.
O ministro da Justiça da Bolívia, Hector Zaconeta, classificou como “sinal de transparência” o convite a uma auditoria e à conferência da totalização dos resultados a partir da análise das atas, mas afirmou que a Constituição do país estabelece um procedimento para eleição do presidente e que esta não pode ser alterada.
“A Constituição da Bolívia estabelece com clareza qual é o procedimento de declaração do candidato e isso não pode estar em discussão, pois depende do resultado eleitoral. Nenhuma situação, pressão ou elemento interno ou externo pode condicionar, como em nenhum dos nossos países, uma situação que não esteja expressamente estabelecida na Constituição. O contrário significaria a violação do princípio do Estado Democrático de Direito”, respondeu Zaconeta.
Outros países criticaram a proposta de uma natureza vinculante da auditoria, caracterizando esse procedimento como uma interferência da OEA sobre a soberania de um Estado-membro. A embaixadora do México, Luz Elena Rivas, condenou a medida com este caráter. “O México reconhece povo e as instituições de Bolívia como únicos atores que podem dar certeza do respeito à decisão e contribuir para superar os desafios da democracia com civilidade”.
A embaixadora da Nicarágua, Ruth Tapia Roa, também repeliu o intento, lembrando que a Carta da OEA prevê a não interferência nos assuntos da jurisdição interna dos Estados-membros. “Denunciamos a instrumentalização com fins políticos da missão da OEA. A organização não é entidade supranacional nem sua finalidade é ser a censora dos processos políticos. Foi criada para fomentar a solidariedade e cooperação dos estados americanos”.
A totalização dos resultados ainda segue, e precisa incorporar os cerca de 5% dos votos restantes. Os protestos seguem em diversos locais do país, como em Santa Cruz. Em outras localidades, houve atos pró-Evo.
Não houve informação nem pela OEA nem pelo governo boliviano, ainda, de como se dará a auditoria e análise das atas de votação. O grupo formado por Brasil, EUA, Argentina e Colômbia sinalizou que reconheceria um governo a partir de resultados que significassem “realmente a vontade do povo”, mas não houve declaração no sentido de não reconhecer uma eventual nova gestão de Evo Morales.