02/04/2019 às 11h03min - Atualizada em 02/04/2019 às 11h03min

Conheça a história pouco contada de Campos dos Goytacazes

Redação do Jornal AURORA entrevistou a professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF, Maria Catharina Reis Queiroz Prata

Priscila Riscado / Jornal Aurora
Divulgação / Prefeitura de Campos
A maior cidade do interior do Rio de Janeiro, Campos dos Goytacazes, comemorou na última quinta-feira (28) o aniversário de 184 anos de emancipação política. Para comemorar a data, várias programações culturais foram realizadas e até a Prefeitura da Cidade decretou ponto facultativa nas repartições públicos do município.

Conhecido como a cidade do petróleo, do chuvisco e dos índios Goitacás, Campos possui histórias e curiosidades que poucos campistas e turistas sabem.

E para conhecer um pouco mais dessa cidade tão rica em vários segmentos, que a redação do Jornal AURORA entrevistou a professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do IFF, Maria Catharina Reis Queiroz Prata. Confira a entrevista:

Jornal Aurora:  Como surgiu o nome "Campos dos Goytacazes"? Existiram outros nomes antes?  

Maria Catharina: Sua formação iniciou-se a partir da divisão territorial do Brasil em Capitanias Hereditárias, em 1534, onde foram criadas 14 unidades, divididas em 15 lotes. Couberam a Pero Góis da Silveira 30 léguas de costa, entre a Capitania do Espírito Santo, doada a Vasco Fernandes Coutinho, até a de São Vicente, doada a Martim Afonso de Souza, abrangendo os campos habitados pelos índios Goitacás e, por causa disso, passou a possuir a alcunha de “Campos dos Goitacás”. Este nome foi confirmado por Simão de Vasconcelos, um clérigo jesuíta do século XVII, que em visita ao local onde se originou a cidade, o descreve como dotado de "campinas formosíssimas" e cita seu nome, em 1658, como "Campos dos Goytacazes".

Jornal Aurora: Com os Índios Goitacás viviam antes da chegada de outros habitantes?  

Maria Catharina: No início da colonização, Campos era uma grande planície. Uma paisagem composta por campinas, rios, brejos e lagoas, povoadas com bela e riquíssima vegetação e variada fauna (RODRIGUES, 1988, p. 16). Neste paraíso selvagem, feito de rios caudalosos, lagoas, brejos e matas espessas, se escondia o verdadeiro proprietário da terra, embora não fosse assim considerado: a nação indígena goitacá. Entre as oito ou nove nações-troncos dos indígenas do Brasil, juntamente com os Tupis-Guaranis, Jês, Aruaques, Caraíbas e outros, o Goitacá dominava o litoral do Cabo de São Tomé ao Cabo Frio e toda a planície dos Campos dos Goytacazes (RODRIGUES, 1988, p. 16-17).

De acordo com Alberto Lamego (1945, p. 31) vários autores destacam as características físicas e comportamentais dos índios Goitacá, descrevendo-os como ferozes e grandes corredores. Muitos divergem ao se referirem à alcunha, que variava entre Goitacá, Guaitacá, Guatahar, Goitacaz, Guiatacás, Goiatacás, Ovaitagnasses, Ouetacá, Waitacá, Aitacaz, Itacaz e Uetacaz.

Na verdade, pouco se tem conhecimento desses indígenas, de sua cultura e costumes, visto terem sidos exterminados pelos colonizadores portugueses a partir do século XVI.

Jornal Aurora: Como que os primeiros habitantes viviam na cidade? A economia?   

Maria Catharina: De acordo com dados históricos do IBGE (2016), a colonização iniciada por Miguel Aires Maldonado, um dos sete capitães, na primeira metade do século XVII, teve o predomínio da pecuária, que atendia o mercado do Rio de Janeiro.

A partir de 1674, violentos conflitos pela posse da terra aconteceram na região após Martim Correia de Sá, filho de Salvador Correia de Sá e Benevides e conhecido como visconde de Asseca, obter a doação da Capitania da Paraíba do Sul – nome posterior pelo qual passou a ser conhecida a Capitania de São Tomé. Pesados tributos passaram a ser cobrados sobre as terras ocupadas por posse e arrendamento, gerando protestos dos ocupantes, dos proprietários e das ordens religiosas. Somente no início do século XVII foram fundadas a Vila de São Salvador e São João da Praia, sob comando dos Asseca. Iniciava-se a “tirania dos Asseca”, que durou quase cem anos (LAMEGO, 1945) .

Após estes graves tumultos, ocorridos durante a segunda metade do século XVII e a primeira do século XVIII, “a atividade açucareira consolidou-se e desenvolveu-se, tanto em grandes latifúndios como em pequenas propriedades, expandindo-se, no século XIX, inicialmente nos engenhos e, mais tarde, em usinas” (IBGE, 2016).

Rodrigues (1988) menciona que o sucesso oriundo da produção açucareira possibilitou o desenvolvimento de uma aristocracia rural de elevado padrão de vida que era constituída por mais de trinta barões, comendadores e viscondes. Essa nobreza edificou na cidade grandes residências, edificações que pouco a pouco iriam substituir os antigos sobrados. Precisamente no ano de 1835, a então vila de São Salvador dos Campos é elevada à categoria de cidade, num período de grande prosperidade econômica, e passa a contar com várias intervenções urbanísticas, tais como construção de canais, de estradas de ferro, instalação de água, esgoto e luz elétrica.

Vale destacar que o açúcar representava a riqueza do lugar, mas era o comércio varejista que detinha o maior lucro na cidade, tendo se expandido consideravelmente no final do século XIX e início do século XX. A pujança econômica da cidade a tornava a principal praça de negócios da região.

Jornal Aurora: Quais são os lugares culturais que ainda existem na cidade?  

Maria Catharina: Quando falamos em LUGARES e CIDADES, devemos relacioná-los com o TEMPO.

Se a cidade é um lugar no tempo, é através do tempo passado de um espaço construído que podemos contá-lo, e não é possível pensar um sem o outro. Uma cidade histórica é, portanto, memória, fruto de determinada sociedade.

Inicialmente, Campos se desenvolveu rodeada por extensos canaviais e chácaras dos barões do açúcar. Os casarões, de propriedade da aristocracia ou fazendeiros abastados, eram dotados de grandes salões, engenho, capela e senzala, e se distribuíam por toda a planície goitacá. A arquitetura, reconhecida como sendo do tipo colonial, é chamada “solarenga”.  O nome é relativo ao substantivo “solar”, cuja definição é dada pelo Dicionário Aurélio: “Antiga morada de família; mansão” (FERREIRA, 2000, p. 643).

Dentre vários edifícios dessa tipologia existentes na região rural, destaco quatro solares, pela importância histórica e arquitetônica, e por serem ainda os imóveis inseridos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na lista dos bens tombados da cidade: Solar do Colégio, Solar dos Airizes, Solar da Baronesa de Muriaé e Solar de Santo Antônio, também chamado Solar do Barão de Carapebus, onde hoje funciona o Asilo do Carmo. A maioria se encontra em estado precário de conservação, o que poderá acarretar seu desaparecimento e, consequentemente, se transformar numa ameaça a memória coletiva, impedindo o necessário sentido de identidade.

Já na área urbana, temos o Solar do Visconde de Araruama (Museu Histórico de Campos), Solar do Barão da Lagoa Dourada (Liceu de Humanidades), a Lira de Apolo, a Villa Maria e Solar do Barão de Pirapitinga (Hotel Amazonas), além de belíssimas e antigas igrejas: Nossa Senhora do Carmo (1752), Nossa Senhora da Lapa (1740),  Igreja de São Benedito (1865) e Igreja de São Francisco, edificada em 1771, sem contar a Basílica Menor do Santíssimo Salvador, na Praça São Salvador.

Um patrimônio cultural riquíssimo, material e imaterial, construído em quase quatro séculos de história.

Jornal Aurora:  Por que mesmo tendo uma cultura tão rica, Campos ainda não é uma referência em várias segmentos?

Maria Catharina: Vou lhe responder no segmento do "patrimônio cultural": as referências devem ser reconhecidas como tal.

Numa cidade, o patrimônio, definido como a herança que recebemos do passado e que transmitimos às gerações futuras, é constituído pelos bens materiais e imateriais referentes à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade. Esta memória necessita se apoiar na materialidade, nas vivências, nas sensibilidades do vivido nas cidades.  Ao buscarmos os antecedentes de nossas vidas como membros de uma sociedade, encontraremos a primeira célula social que é o núcleo familiar. Através dele nós estabelecemos uma relação com o passado, conhecemos nossa realidade presente e caminhamos na procura da perenidade, guardando memórias que nos identificam e testemunham a nossa vida. A memória do que fomos, aprendemos e vivemos nos confere identidade, orientação, estimula a nossa cidadania e o viver em comunidade.

Portanto, importa compreender o que os bens culturais representam para a população local e qual a consciência que estes sujeitos possuem da importância da cidade e do patrimônio histórico tombado. A preservação do patrimônio deve estar em função de expô-lo aos indivíduos que, ao reconhecê-lo como parte de sua memória, se beneficiam da preservação dos bens culturais, realizando uma ancoragem de suas referências de memória e identidade. E é esse o "x" da questão: não existe identificação por parte da sociedade campista. A multiplicidade de sentimentos da população com relação ao seu patrimônio cultural são várias e indicam indiferença, desconhecimento, nostalgia e até revolta. Talvez porque este patrimônio histórico não é notado, visto estarem parcialmente ocultos da população devido aos grandes letreiros que acabam por esconder parte da fachada do edifício, talvez por não possuírem conhecimento do valor artístico que eles detém.

A esta falta de identificação ou reconhecimento da população com o patrimônio cultural existente na cidade, somamos ainda a insignificante atuação dos poderes executivos (federal, estadual e municipal) na gestão e implementação de medidas de valorização e construção da memória coletiva.
Sem conhecer, a sociedade não irá se identificar. Sem se identificar, a sociedade não irá amar. Sem amar, a sociedade não irá preservar.

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