30/05/2023 às 17h38min - Atualizada em 31/05/2023 às 00h04min

Trabalho escravo e a insegurança do sistema jurídico

SALA DA NOTÍCIA Murilo do Carmo Janelli

José Eduardo Gibello Pastore*

O que lhe vem à mente quando ouve a expressão “trabalho escravo”? Não lhe passa imediatamente a ideia de restrição à liberdade? Não lhe vem a ideia de que quem está na condição de escravo não pode se libertar desta situação? 

A Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho define o trabalho forçado ou obrigatório seguindo o conceito de limitação à liberdade: “Todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. 

O ordenamento jurídico brasileiro, porém, ampliou o sentido de trabalho escravo ao introduzir a ideia de trabalho “análogo” ao de escravo e hoje o artigo 149 do Código Penal assim define “trabalho escravo”: “Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. Notem que a limitação à liberdade já não é o único elemento identificador do trabalho escravo no Brasil justamente por conta do vocábulo “análogo” introduzido na lei. 

Já houve a judicialização deste tema. Uma empresa acionou a justiça quando determinado empregador questionou a multa que lhe foi aplicada por auditor do trabalho por conta da prática do trabalho análogo ao de escravo, uma vez que a autuação não teria identificado a restrição da liberdade do trabalhador.

O entendimento do STJ foi de que o crime pode ser configurado independentemente de haver restrição da liberdade de ir e vir do trabalhador. Segundo o relator do processo, “a configuração do crime está condicionada à demonstração de submissão a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes”. Portanto, trata-se de um crime de ação múltipla e conteúdo variável.

Devido à redação do artigo 149 do CP, a justiça entendeu que não mais se exige, em todas as suas formas, a união de tipos penais, bastando que se siga a orientação do preceito primário. Desta forma, para se caracterizar a condição de trabalho análogo ao de escravo, basta submeter a pessoa a trabalhos forçados, jornadas exaustivas e condições degradantes de trabalho. Os elementos configuradores descritos em tal artigo são, portanto, alternativos e não cumulativos. Com a devida vênia, não podemos concordar com tal premissa.

De acordo com esta decisão, temos o conceito de trabalho forçado como possível caracterização de trabalho análogo ao de escravo, por exemplo. Trabalho “forçado”, como o nome diz, é a atividade laborativa desenvolvida de forma compulsória, sem voluntariedade. Nota-se que a jornada forçada é aquela que viola os preceitos limitadores da jornada de trabalho contidos tanto na Constituição Federal quanto na legislação ordinária como, por exemplo, a hora extra. Assim, de acordo com a decisão acima referida, pode também ser entendida como trabalho análogo ao de escravo, que seria absurdo. 

Por fim, na condição elástica de trabalho análogo ao de escravo do artigo 149 do Código Penal, está o termo “condições degradantes”. Condição degradante é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho, que pode se configurar em trabalho análogo ao de escravo.

Qualquer empregador cujos empregados estejam em condições próximas a uma das premissas acima pode se sujeitar às penas da prática de trabalho escravo.

Entendemos que este fato vulnerabiliza demasiadamente as empresas. Por conta do artigo 149 do Código Penal, podem se ver acusadas de trabalho escravo, sendo que nem imaginariam que estão praticando algo que pudesse chegar perto disso. Afinal, que empresa não pratica a sobrejornada, por exemplo?

Hora extra, não observância das normas de saúde e segurança, trabalho degradante ou mesmo precário podem ser considerados como práticas de trabalho análogo ao de escravo. 

Se, para a configuração do trabalho análogo ao de escravo, não há mais a necessidade de que haja concomitantemente a restrição à liberdade do trabalhador, então o Código Penal deveria tratar este tipo de delito com a nomenclatura adequada, qual seja, “trabalho degradante”, ou mesmo “trabalho indigno”. Não deveria inserir esta condição no contexto de trabalho “análogo ao de escravo”, já que, voltando ao início deste artigo, esta premissa remete naturalmente à restrição da liberdade, ou seja, a impossibilidade de o trabalhador se libertar te tal situação. 

O legislador, ao prever o “trabalho análogo ao de escravo” no artigo 149 do Código Penal, equivocou-se. Entendeu que este pode se caracterizar pela simples prática de sobrejornada, pelo descumprimento de normas de saúde ou segurança do trabalho, ou mesmo pela existência de condições degradantes de trabalho. Vale dizer que, ainda sejam que reprováveis e deploráveis, não significam que são sinônimas de trabalho análogo ao de escravo.

Nem todo trabalho degradante é escravo, mas todo trabalho escravo é degradante.

Nem todo trabalho exaustivo é escravo, mas todo trabalho escravo é exaustivo.

Nem todo descumprimento de normas de saúde e segurança configura trabalho escravo, mas todo trabalho escravo viola as condições de dignidade, saúde e segurança do trabalhador.

O legislador não poderia entender que estas práticas são sinônimas de trabalho análogo ao de escravo, pois não há restrição da liberdade. Erra o Código Penal.

*José Eduardo Gibello Pastore é advogado, consultor de relações trabalhistas e sócio do Pastore Advogados. 
 


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